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Cocaína, cura e morte
Freud, papa e cientistas viram na droga uma promessa de cura.
03/11/2025 13h36
Por: Heitor Silva Fonte: OBSERVADOR
Cocaína: anúncio no fim do século XIX - Wikimedia Commons

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva, ao comentar sobre o tráfico e o consumo de drogas, afirmou que seria “mais fácil”, para Brasil e Estados Unidos, “combater viciados”. Em seguida, cometeu um ato falho ao dizer: “Os usuários são responsáveis pelos traficantes, que são vítimas dos usuários também”.

As drogas são motivo de extrema preocupação para os governos, tanto pelo aspecto da saúde pública dos usuários quanto pelo tráfico.

O primeiro país a proibir a cocaína foram os Estados Unidos, em 1914. No Brasil, a primeira lei que restringiu o uso da droga, juntamente com o ópio e a morfina, surgiu em 1921 – fruto de um acordo internacional firmado em Haia dez anos antes. A maconha foi proibida em 1930, e as primeiras prisões por porte de drogas foram registradas em 1933 no Rio de Janeiro. Até então, não havia controle policial, e o consumo era tolerado em prostíbulos frequentados por jovens da classe alta.

Mesmo proibida, a cocaína nunca deixou de ser consumida.

Nos anos 1970, novas leis tentaram combater o narcotráfico colombiano, que, sob o comando de Pablo Escobar, era responsável por 80% da cocaína distribuída nos Estados Unidos. Com o dinheiro ilícito, ele construiu um império na Colômbia e comandava um exército do tráfico. Essa história já rendeu filmes e séries.

Se hoje o uso e o tráfico de drogas constituem um dos problemas mais sérios enfrentados por todos os países, nem sempre foi assim. A cocaína foi tida como poderoso medicamento para a cura de muitas doenças.

De acordo com o psicanalista argentino Emilio Rodrigué, autor da biografia Sigmund Freud, o Século da Psicanálise, o psicanalista vienense passou a consumir cocaína aos 28 anos – e manteve o hábito por mais de uma década.

Além de fazer uso, Freud foi pioneiro em registrar cientificamente os efeitos da cocaína. No século XIX, ele publicou um artigo no qual sintetizou o clima de esperança dos cientistas quanto à nova droga, vista como possível cura para várias doenças – distúrbios digestivos, fraqueza, dependência de álcool e morfina, asma, além de atuar como afrodisíaco e anestésico.

Essa descoberta abriu caminho para que Carl Koller, em 1884, entrasse para a história da medicina como o descobridor da anestesia local com substância à base de coca.

Naquele mesmo ano, nos Estados Unidos, William Stewart Halsted (1852–1922), desenvolveu um bloqueador neural por meio de injeções de cocaína em determinados nervos, conseguindo anestesiar regiões específicas do corpo.

As propagandas do fim do século XIX afirmavam que a cocaína “tornava os homens mais corajosos e enchiam as damas de vivacidade e charme”.

A droga se tornou tão popular que o papa Leão XIII (1810–1903) exibia o rótulo do Vinho Mariani, um coquetel à base de cocaína e álcool criado pelo químico francês Angelo Mariani – era a sua bebida predileta.

O químico francês foi um dos primeiros a fazer fortuna com a cocaína. O “vinho do papa” conquistou rapidamente intelectuais e celebridades entre os quais Júlio Verne, Henrik Ibsen, Alexandre Dumas e Thomas Edison.

Três séculos antes, a planta da coca já havia chegado à Europa por meio dos navegadores espanhóis. Por sorte, ela não despertou grande interesse, pois as folhas chegavam murchas e perdiam suas propriedades durante a longa viagem.

No final do século XIX, uma paciente de Freud morreu de overdose. A partir daí, os relatos sobre os malefícios da cocaína se multiplicaram, e a comunidade científica abandonou de vez o uso da droga como medicamento.

Não obstante, a cocaína ainda tem uso medicinal, como anestésico tópico, mas extremamente limitado e com rigoroso controle por profissionais de saúde.

Além disso, qualquer pessoa que desembarque no Peru toma chá de folhas de coca ou consome balas feitas com a planta para inibir os efeitos da altitude.