Todas as Sextas-Feiras Santas discorro sobre algum fato sobre a Paixão de Cristo. Nesta abordarei as reflexões do apóstolo Tomé sobre o martírio de Jesus.
O apóstolo Tomé estava no meio daquela populaça, disfarçado com vestes diferentes das usuais. E as mesmas reflexões que ele fez naqueles dolorosos momentos são as mesmas que já fiz, quando ainda não entendia o significado daquele teatro vivo e real, e que muitos o fazem com interrogações silenciosas.
Onde estava aquele Deus amoroso e bom sobre quem repousavam as suas esperanças? Seu amor possuiria apenas uma cruz para oferecer ao seu filho dileto? Por que motivo não se rasgavam os horizontes, para que as legiões dos anjos salvassem do crime da multidão furiosa o Mestre amado? Que Providência era aquela que não se manifestava no momento oportuno? Como explicar que Deus tolerasse aquele espetáculo sangrento de seu filho, conduzindo o madeiro infame, sob os impropérios e pedradas. O prêmio do Cristo era então aquele monte de desolação, reservado aos criminosos?O discípulo de Jesus contemplou aquelas mãos que haviam semeado o bem e o amor, agora agarradas à cruz, ensanguentadas.
A fronte aureolada de espinhos era uma nota irônica na sua figura sublime e respeitável. Valera a pena haver distribuído entre os homens tantas graças do Céu?
Tomé, nessas tantas reflexões, desejava encontrar algum dos companheiros para trocar impressões; entretanto, não viu um só deles. Pensou nos beneficiados pelo Messias, que assistiam ao seu martírio humilhante, e que na véspera se mostravam tão reconhecidos. A ninguém encontrou. Pensou nos leprosos, nos cegos, nos deficientes, aos quais Jesus havia restituído a saúde, que fugiam ao testemunho. O apóstolo estava mergulhado em dolorosos e sombrios pensamentos.
Em torno da cruz estrugiam gargalhadas e ironia. O Mestre, contudo, guardava no semblante uma serenidade inexcedível. De vez em quando, o seu olhar se alongava por sobre a multidão, como querendo descobrir um rosto amigo.
Sob as vociferações da turba amotinada, Tomé observava atento as lanças e os vitupérios se cruzarem nos ares, fixou os olhos nos dois malfeitores que a justiça do mundo havia condenado à pena extrema e notou que o Messias punha neles os olhos amorosos, enquanto um suor lhe corria do rosto venerável, misturando-se com o vermelho das chagas vivas e dolorosas. Com aquele olhar inesquecível, Jesus lhe mostrou as úlceras abertas, como sinal do sacrifício. Nesse momento, o discípulo experimentou penosa emoção a lhe dominar a alma sensível. Olhos enevoados de pranto, recordou os dias radiosos do Tiberíades.
O apóstolo, atento, observou a rogativa de um dos ladrões a Jesus, em tom de profunda sinceridade:
– Senhor! – disse ele, ofegante – lembra-te de mim, quando entrares no teu reino!...
Aos ouvidos de Tomé chegaram ecos da palavra suave de Jesus:
– Vês, Tomé? Quando todos os homens da lei não me compreenderam e quando os meus próprios discípulos me abandonaram, eis que encontro a confiança leal no peito de um ladrão!...
Como se vê, o ser humano progrediu pouco moralmente nesses mais de dois mil anos desde o suplício do Gólgota. O beijo de Judas continua em outras bocas; a malignidade, a vilania, a traição, a hipocrisia ainda se hospedam nos corações insensíveis.
As mesmas reflexões e questionamentos fiz até compreender que o martírio de Jesus teve e tem um significado transcendental. Compreendi o significado do que disse João, o evangelista: “Deus enviou o seu Filho ao mundo não para condenar o mundo, mas para que o mundo fosse salvo por Ele” (3:17).
Alguém já afirmou que se Jesus não tivesse sido condenado à morte cruel, o mundo teria progredido muito. Discordei. Afirmei que foi o suplício de Jesus que deu outro rumo à Humanidade.
A essência do teatro grego era a tragédia, que produzia no espírito humano a catarse, que os gregos entendiam como purificação e libertação espiritual. A tragédia provocava no espírito dos espectadores reflexões sobre a debilidade, o destino, a perversão do ser humano e suas consequências, sempre dolorosas.
Assim, Jesus poderia ter-se desvencilhado da pesada cruz e realizar mais um dos seus prodígios; não o fez, porém, para que a Humanidade se purificasse por meio da tragédia. É nisso que consiste o registro do evangelista João. A boa semente do evangelho tem produzido os frutos do amor, da compaixão, da solidariedade nos bons corações humanos.
*[1] Alguns trechos foram extraídos do livro “A Boa-Nova”, de Humberto de Campos – 37.ed. – Brasília: FEB – Federação Espírita Brasileira, cap. 28.