Na coluna anterior, questionei se é possível amar os inimigos, e logo esclareci que um fato mostra que sim.
Amar os amigos e odiar os inimigos é um comportamento natural, próprio do ser humano, ainda em evolução. Mas Jesus nos fez uma exortação: “Amai os vossos inimigos” (Lucas, 6:35).
E o Mestre complementa que quem ama apenas os amigos não merece qualquer recompensa, já que também os publicanos1 e os fariseus2 faziam a mesma coisa.
É possível, mesmo sendo cristão, alguém seguir essa orientação, pondo-a em prática? Até mesmo alguns estudiosos do Evangelho entendem ser muito difícil, de modo que não odiar os inimigos, não ter contra eles desejo de vingança, nem criar obstáculo à reconciliação já seria um grande avanço.
Mas amar os inimigos é a suprema elevação moral e espiritual, como ocorreu com Estêvão, o primeiro mártir cristão, que orou por seus inimigos enquanto o matavam. Mais tarde, um desses inimigos se converteu ao Cristianismo. Esse homem se chamava Paulo, que se tornou um grande missionário, e sem ele a doutrina de Jesus não teria chegado tão longe.
Fiz essa introdução com o objetivo estimular os leitores a uma reflexão. Há quem julga ser impossível o ensinamento de Jesus, mas um fato mostra que sim. Ei-lo.
Mesmo quem não aprecia músicas clássicas já deve ter ouvido falar nos tenores espanhóis Plácido Domingo e Jose Carreras; este nascido em Barcelona e aquele, em Madri.
A rivalidade entre os habitantes dessas regiões é histórica, por causa da luta dos catalães para se separar da Espanha e formar um Estado independente, já tendo ocorrido vários atos terroristas, inclusive. Apesar disso, Plácido e Carreras eram amigos, tanto assim que se apresentaram juntos muitas vezes. Em 1984, porém, por causa de uma séria discussão sobre política, eles romperam as relações e se tornaram inimigos.
Já em 1987, Jose Carreras descobriu que era portador de leucemia. E para submeter-se ao tratamento da doença tinha que viajar mensalmente aos Estados Unidos. Devido ao alto custo desse tratamento e viagens, e porque já não tinha como trabalhar, a sua condição financeira foi-se esgotando.
Quando já não tinha mais condição de custear as despesas, um amigo lhe disse que, em Madri, havia uma entidade denominada “Fundación Hermosa”, que fora instituída, única e exclusivamente, para proporcionar tratamento aos portadores de câncer. Então, ele passou a frequentá-la, e a doença foi eliminada completamente em pouco tempo.
Logo que as suas forças permitiram, ele voltou a cantar e destinava parte dos cachês àquela fundação.
Algum tempo depois, ao ler o estatuto da instituição, ficou surpreso ao saber que ela fora criada e mantida por Plácido Domingo. E eis a surpresa maior: tomou conhecimento de que ela fora instituída justamente para atendê-lo, mas Plácido fez questão de manter-se no anonimato para não o constranger.
Esse fato provocou em Jose Carreras indescritível emoção.
Certo dia, quando Plácido Domingo fazia uma apresentação, Carreras surgiu no palco, de surpresa, ajoelhou-se aos pés do seu benfeitor, pediu-lhe perdão e agradeceu-lhe. A plateia emocionada, de pé, aplaudiu longamente aquela atitude.
Uma jornalista que fazia a cobertura do evento, ao final perguntou a Plácido Domingo por que ele criara aquela Fundação para beneficiar um inimigo. Ele respondeu: “Uma voz como a de Carreras não poderia morrer.”
É a suprema elevação espiritual!
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“Cada boa ação que você pratica é uma luz que você acende em torno dos próprios passos” (Chico Xavier)
1 Publicanos: assim eram os cobradores de impostos, de taxas e das rendas de todas as espécies em todo o Império Romano. Eram odiados pelos judeus, que jamais aceitavam pagar tributos; muitos deles foram acusados de se enriquecerem de forma ilícita.
2 Fariseus: a grande severidade de princípios que defendiam era apenas aparente; na prática, eram orgulhosos. Em sentido figurado, fariseu é “pessoa que busca transparecer uma piedade, honestidade ou caridade que não possui; falso, mentiroso” (Dicionário Aurélio).
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