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Psicologia das massas

“Milhares de corpos que são um corpo único, monstruoso, informe, indescritível, de animal fantástico.”

09/01/2023 às 16h37 Atualizada em 09/01/2023 às 16h53
Por: Samuel Fonte: Dr. Henrique
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 Invasão do Congresso Nacional pela massa de vândalos

A propósito do vandalismo, no último domingo (8), nos prédios do Palácio do Planalto, do Congresso Nacional e do STF, associo-o ao estouro da boiada que a psicologia de massa explica.

Um dos mais belos capítulos de “Os Sertões”, romance de Euclides da Cunha, é “o Estouro da boiada”, do qual transcrevo alguns trechos para ilustração deste artigo.

Segue a boiada vagarosamente, à cadência daquele canto triste e preguiçoso. Escanchado, desgraciosamente, na sela, o vaqueiro [...]. E prosseguem, em ordem, lentos, ao toar merencório da cantiga, que parece acalentá-los, embalando-os com o refrão monótono [...], ecoando saudoso nos descampados mudos…

De súbito, porém, ondula um frêmito sulcando, num estremeção repentino, aqueles centenares de dorsos luzidios. Há uma parada instantânea. Entrebatem-se, enredam-se, trançam-se e alteiam-se fisgando vivamente o espaço, e inclinam-se, e embaralham-se milhares de chifres. Vibra uma trepidação no solo; e a boiada estoura…

A boiada arranca.

[...]

E lá se vão: não há mais contê-los ou alcançá-los. Acamam-se as caatingas, árvores dobradas, partidas, estalando em lascas e gravetos; desbordam de repente as baixadas num marulho de chifres; espreitam, britando e esfarelando as pedras, torrentes de cascos pelos tombadores; rola surdamente pelos tabuleiros ruído soturno e longo de trovão longínquo…

Destroem-se em minutos, feito monte de leivas, antigas roças penosamente cultivadas; extinguem-se, em lameiros revolvidos, as ipueiras rasas; abatem-se, apisoados, os pousos; ou esvaziam-se, deixando-os os habitantes espavoridos, fugindo para os lados, evitando o rumo retilíneo em que se despenha a “arribada”, — milhares de corpos que são um corpo único, monstruoso, informe, indescritível, de animal fantástico, precipitado na carreira douda [...]1.

A leitura desse texto, de rara beleza literária, sempre me levou a comparar o estouro da boiada a uma multidão desvairada e a meditar sobre o que leva uma massa humana a agir sem os freios inibitórios da razão. 

Eu tinha a intuição; faltavam-me conhecimentos científicos.

Li há meses o livro “Psicologia das massas e análise do eu”, de Freud2, e nessa obra encontrei as respostas que desejava.

A circunstância de os indivíduos passarem a integrar uma massa, confere-lhes uma alma coletiva, e assim sentem, pensam e agem de modo inteiramente diferente do que cada um deles sentiria, pensaria e agiria isoladamente. Os elementos da massa são como a união de células que formam um novo ser, explica Freud.

O indivíduo na massa adquire um sentimento de poder invencível que lhe permite entregar-se a instintos, o que não aconteceria se estivesse só. O indivíduo na multidão passa a ser um anônimo, perdendo o senso de responsabilidade.

No vandalismo em Brasília, da mesma forma como aconteceu no Capitólio pelos correligionários de Donald Trump e nas manifestações nas principais capitais do País em 2013, conhecidas como “Jornadas de Junho”, a massa de indivíduos leva a situações como essas, porque desaparecem as personalidades conscientes, vindo à tona os recalques, e todos os sentimentos se voltam para a mesma direção. O indivíduo não é mais ele mesmo; torna-se um autômato.

A assertiva de Freud a esse respeito é muito interessante. Diz ele: 

Pelo mero fato de pertencer a uma massa organizada, o ser humano desce vários degraus na escala da civilização. Em seu isolamento, era talvez um indivíduo culto; na massa, é um bárbaro, isto é, um ser instintivo. Possui a espontaneidade, a violência, a ferocidade e também o entusiasmo e o heroísmo dos seres primitivos3.

Por isso, é perigoso alguém se opor aos indivíduos nessa circunstância.

Na reunião de indivíduos numa massa, anulam-se todas as inibições, prevalecendo os instintos cruéis, brutais, destrutivos, e irrompem-se os impulsos instintivos, como no estouro da boiada em que “milhares de corpos que são um corpo único, monstruoso, informe, indescritível, de animal fantástico”.

E qual é a relação entre o líder e a massa? 

Como um rebanho de animais, a massa humana, instintivamente, tende a obedecer a um líder; prefere a ilusão à realidade e não costuma fazer distinção entre ambas. Em muitos casos, a relação entre o líder e a massa se compara ao hipnotizador e o hipnotizado, tendendo este a obedecer àquele cegamente, porque a sua consciência está ausente – explica Freud. 

Exemplo disso ocorreu entre Hitler e o povo alemão. O resultado todos conhecem.

Entretanto, a relação entre o líder e a massa não é só para o mal. Jesus arrastava multidões, ávidas das lições de amor, moral e justiça.  Depois dele, grande parte da Humanidade não foi mais a mesma.

*****

“A multidão é um monstro sem cabeça”

(Charles Chaplin).

1 Obra completa – Cunha, Euclides da. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1995, vol. II, p. 189 

2 Psicologia das massas e análise do eu – Freud, Sigmund. Porto Alegre (RS): L&PM, 2022.

3 Ibidem, idem, p. 48.
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