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Quarto de Despejo

“Será que Deus esqueceu-me? Será que ele ficou de mal comigo?”

17/11/2025 às 14h34
Por: Heitor Silva Fonte: OBSERVADOR
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Carolina Maria de Jesus autografando o seu livro - Acervo UH/Folhapress – Carta Capital
Carolina Maria de Jesus autografando o seu livro - Acervo UH/Folhapress – Carta Capital

O que faz uma pessoa ser considerada extraordinária? Isso ocorre quando ela consegue situar-se acima dos padrões ordinários, sustentando elevados princípios éticos e morais; o seu pensamento, o seu modo de agir e a busca de um sentido para a vida colocam-na numa posição de destaque.

Uma mulher, moradora de uma favela, com três filhos para criar sozinha, tendo de levantar-se às 4h da manhã para lavar roupas, buscar água na única torneira existente na comunidade; depois saía para a cidade a fim de catar papel e outros objetos descartados para vender. Apesar de tanto trabalho, jamais descuidou da formação moral dos seus filhos – rigorosa, mas amável.

Uma aura sublime existia nessa mulher, que a distinguia das demais na mesma situação. Não se conformava em rastejar como as larvas. Gostava de meditar e escrever, e isso mudou a sua vida.

Certo dia, em 1958, o jornalista Audálio Dantas foi à favela do Canindé, em São Paulo, a fim de colher elementos para uma reportagem sobre a vida dos seus moradores. Enquanto fazia o seu trabalho de garimpagem, conheceu Carolina Maria de Jesus, que lhe falou de anotações que ela fazia sobre os acontecimentos daquela comunidade. Com a intuição de jornalista, ele se interessou pelo assunto, acompanhou-a até sua casa e surpreendeu-se ao ver vinte cadernos surrados e amarelados, com poesias, romances, contos e o seu diário.

Esse achado foi uma preciosidade que deu ao jornalista elementos para uma belíssima matéria, publicada no jornal Folha da Noite. Depois, quando ele se transferiu para a revista O Cruzeiro, editou uma segunda reportagem. Foi um sucesso!

Esses escritos foram a base para o livro Quarto de Despejo, editado em 1960 pela Editora Francisco Alves, tendo Audálio atuado também como editor.

Quarto de Despejo é uma metáfora criada por Carolina para expressar a ideia de um lugar (a favela) onde a sociedade “despeja” seus excluídos, marginalizados e indesejados; um depósito de pessoas e dejetos dos quais a cidade quer se livrar. Representa a ausência do Estado e a desigualdade social.

A obra foi um sucesso editorial, ganhou projeção internacional, foi traduzida para mais de quatorze idiomas, já ultrapassou a marca de dez edições e foi adaptada para o teatro.

Terminada a leitura de Quarto de Despejo – Diário de uma Favelada (Ática, 2020), concluí que o espírito de Carolina Maria de Jesus trouxe para esta última existência na Terra conhecimentos de outras encarnações, como sempre acontece; a sua pobreza material é também prova e expiação de outras vidas. Não encontrei outra justificativa.

O estilo dela é conciso – períodos curtos, expressões claras e objetivas. Isso torna a leitura leve e agradável.

Em seu diário, ela anotou:

1955 — 16 de junho.
Hoje não temos nada para comer. Queria convidar os filhos para suicidar-nos. Desisti. Olhei meus filhos e fiquei com dó. Eles estão cheios de vida. Quem vive precisa comer. Fiquei nervosa, pensando: será que Deus esqueceu-me? Será que ele ficou de mal comigo?

Essa situação é comovente! Pensar em suicídio com os filhos, uma decisão desesperadora e extrema. Mas desiste, e a luta diária continua, porque a vida está sempre ao lado dos fortes.

Extraio do livro outras passagens:

2 de maio.
[...] Eu fiz uma reforma em mim. Quero tratar as pessoas que conheço com mais atenção. Quero enviar um sorriso amável às crianças e aos operários [...].

11 de maio.
O céu está azul e branco. Parece que até a Natureza quer homenagear as mães que atualmente se sentem infelizes por não poder realizar os desejos dos seus filhos.

13 de maio.
Hoje amanheceu chovendo. É um dia simpático para mim. É o dia da Abolição, dia em que comemoramos a libertação dos escravos [...]. E assim, no dia 13 de maio de 1958, eu lutava contra a escravidão atual — a fome.

A denúncia da miséria, das desigualdades e injustiças sociais é uma tônica. Apesar disso, ela era capaz de ver beleza e poesia na Natureza.

20 de dezembro.
Dizem os velhos que, no fim do mundo, a vida ia ficar insípida. Creio que é história, porque a Natureza ainda continua nos dando de tudo. Temos as estrelas que brilham. Temos o sol que nos aquece. As chuvas que caem do alto para nos dar o pão de cada dia.

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