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A Crimeia em Dom Casmurro

Machado de Assis enxergou no século XIX o que ainda hoje se repete.”

12/12/2025 às 16h15
Por: Heitor Silva Fonte: OBSERVADOR
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Guerra da Crimeia (1853 – 1856) - RTP ENSINA
Guerra da Crimeia (1853 – 1856) - RTP ENSINA

A invasão da Ucrânia pela Rússia ainda causa destruições e sofrimentos tanto aos que bravamente insistem em permanecer no país quanto aos refugiados, que abandonaram tudo o que construíram e estão espalhados pelo mundo. Não há uma só pessoa dotada de bom senso que não considere injusta essa invasão.

Apesar disso, Trump apresentou um plano para o fim dessa guerra, e a maior parte favorável à Rússia. Sugeriu que alguns dos territórios por ela invadidos passem a pertencer-lhe. Seria um prêmio ao agressor. Os tiranos se entendem! Entre esses territórios está a Crimeia.

O histórico de invasões de países pelos russos não é de agora; vem de longe. No romance Dom Casmurro, lançado em 1899, Machado de Assis introduziu o capítulo “A Polêmica”, no qual Manduca polemiza com o protagonista Bentinho sobre a Guerra da Crimeia, ocorrida de 1853 a 1856 – de um lado, a Rússia; de outro, uma aliança formada pelo Reino Unido, França, Reino da Sardenha e o Império Otomano. A Rússia invadira a Crimeia para chegar a Istambul (na época, Constantinopla), sob o falso pretexto de preservar as terras sagradas dos cristãos.

Nesse capítulo, dois fatos merecem destaque: um histórico – a Guerra da Crimeia; outro, de ordem sanitária – a hanseníase, chamada à época de lepra, doença que causa lesões na pele e comprometimento dos nervos das mãos, pés, braços, pernas, rosto, olhos e nariz, provocando deformações. Além de problema de saúde pública, era também um fenômeno social, porque o portador da doença era excluído da convivência social, o que remontava aos tempos bíblicos (Levítico – declaração de impureza, 13:44-45; a cura de um leproso por Jesus – Mateus 8:1-4 e Marcos 1:40-45).

Eis como Bentinho (narrativa em primeira pessoa) descreve Manduca:
“Manduca vivia no interior da casa, deitado na cama, lendo por desfastio. [...] Trazia-o para o fundo da loja, donde ele espiava um palmo da rua e a gente que passava. Era todo o seu recreio. Foi ali que o vi uma vez, e não fiquei pouco espantado; a doença ia-lhe comendo parte das carnes, os dedos queriam apertar-se; o aspecto não atraía, decerto. Tinha eu de treze para quatorze anos. Da segunda vez que o vi ali, como falássemos da guerra da Crimeia, que então ardia e andava nos jornais, Manduca disse que os aliados haviam de vencer, e eu respondi que não.” (Todos os Romances e Contos Consagrados de Machado de Assis, v. 2 – São Paulo: Nova Fronteira, 2016).

A guerra já havia terminado, mas esse relato é uma reminiscência de Bentinho. Longe do convívio social, Manduca passou a ocupar-se de leituras e a ter opinião firme: “Os russos não hão de entrar em Constantinopla!” – repetia sempre, expressando o universal sentimento de justiça. O oposto ocorria com Bentinho, cuja tragédia pessoal e emocional, causada pelo ciúme doentio de Capitu, retirava-lhe o interesse pelos problemas sociais, o que se demonstra nesta passagem, quando recebe uma carta de Manduca:

“Li-a e meti-me a refutá-la. Não me recordo de um só dos argumentos que empreguei, nem talvez interesse conhecê-los, agora que o século está a expirar; mas a ideia que me ficou deles é que eram irrespondíveis.”

A guerra já havia terminado quando o romance foi escrito, mas Machado de Assis conhecia a máxima filosófica de que “A História costuma dar voltas e parar no mesmo lugar”, com algumas variantes:
“A história se repete, a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa.” (Karl Marx).
“As sociedades passam por ciclos que retornam a estágios semelhantes, ainda que em novos contextos.” (Giambattista Vico – teoria dos corsi e ricorsi).

Além da fina ironia de Machado de Assis, essa teoria é clara nesta passagem:
“Não entraram, efetivamente, nem então, nem depois, nem até agora. Mas a predição será eterna? Não chegarão a entrar algum dia? Problema difícil. O próprio Manduca, para entrar na sepultura, gastou três anos de dissolução, tão certo é que a natureza, como a história, não se faz brincando. A vida dele resistiu como a Turquia; se afinal cedeu, foi porque lhe faltou uma aliança como a anglo-francesa, não se podendo considerar tal o simples acordo da medicina e da farmácia. Morreu afinal, como os Estados morrem; no nosso caso particular, a questão é saber, não se a Turquia morrerá, porque a morte não poupa a ninguém, mas se os russos entrarão algum dia em Constantinopla; essa era a questão para o meu vizinho leproso, debaixo da triste, rota e infecta colcha de retalhos.”

Machado de Assis enxergou no século XIX o que ainda se repete.

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