
As últimas semanas têm sido de apreensão para os defensores dos animais. Desde setembro, uma prática cruel por natureza, ou seja, a exportação de animais vivos, tem sido um inferno na Terra para as vacas e seus bezerros em alto mar. O navio cargueiro Spiridon II está vagando entre o Mediterrâneo e o Atlântico carregando quase 3 mil vacas e bezerros em sofrimento extremo, submetidos a condições que nenhuma sociedade que se diz civilizada poderia tolerar. A embarcação, em péssimo estado, deixou o porto de Montevidéu, no Uruguai, em 19 de setembro, levando 2.901 animais destinados à engorda e reprodução na Turquia. Mas o que já seria, por si só, um modelo de exploração altamente contestado, transformou-se em um pesadelo que expõe o lado cruel do comércio de animais vivos.
Ao chegar no destino, em 22 de outubro, as autoridades turcas barraram o desembarque em razão de 469 animais estarem sem as etiquetas auriculares exigidas pela burocracia sanitária. E, assim, aquelas vidas já em sofrimento foram obrigadas a permanecer trancadas no porão de um navio sucateado, superlotado, com ventilação precária, ração insuficiente e água limitada. Durante mais de três semanas, o Spiridon II ficou ancorado, imóvel, transformado em um depósito flutuante de sofrimento.
Várias organizações de proteção como a Animal Welfare Foundation (AWF) alertaram o mundo ao denunciar o calor sufocante, o cheiro fortíssimo de amônia, as vacas deitadas em meio às próprias fezes, a falta de espaço para se mover e a fome crescente. Até o momento, sabe-se que pelo menos 58 animais já morreram. Além disso, mais de 140 bezerros nasceram a bordo, em meio ao horror, sem qualquer chance real de sobreviver. Não há como imaginar o sofrimento das vacas que tiveram partos sofríveis em meio ao inferno criado propositalmente pelo ser humano.
Não podemos esquecer que são vidas, não produtos. Não podemos banalizar a palavra carga para seres sencientes, inteligentes, com percepção da própria dor. Animais não são itens recusáveis!
Lamentavelmente, quando as autoridades da Turquia permitiram um breve reabastecimento de água e comida para os animais, o navio já havia deixado a costa turca, em 15 de novembro. Além disso, inexplicavelmente, a embarcação desligou o sistema de rastreamento e ficou desaparecida por mais de três dias. Quando reapareceu estava próxima à Líbia e, no momento, a rota indica que o navio tenta retornar ao Uruguai, com chegada prevista para 14 de dezembro. As chances dessas vacas e bezerros chegarem com vida é pouca, pois passarão mais um mês agonizando de fome e sede em alto-mar.
Vale lembrar que o navio tem mais de 80 irregularidades documentadas em inspeções anteriores e a tripulação não possui treinamento para lidar com a situação. Muitas vacas estão prenhas e há grande possibilidade de abortos e morte dos recém paridos. Além disso, as organizações de proteção animal já avistaram carcaças de animais sendo lançados ao mar.
A Animal Welfare Foundation clama para que países europeus acolham temporariamente os animais, apontando que o Spiridon ainda permanecerá alguns dias em águas europeias. “Não podemos simplesmente abandonar esses animais à própria sorte”, afirma Maria Boada Saña, gerente de projetos da ONG AWF.
Essa situação gravíssima escancara novamente o problema de tratar animais como objetos descartáveis. Jamais entenderemos por qual motivo a burocracia da falta de brincos sanitários falou mais alto que o respeito pela vida de milhares de animais sentindo medo, fome, sede e dor.
Esse horror contrasta com princípios éticos reconhecidos internacionalmente. Em 1978, a Declaração Universal dos Direitos dos Animais (D.U.D.A.), proclamada na Unesco, afirmou que nenhum animal deve ser submetido a maus-tratos, sofrimento ou exploração desnecessária. Defendeu o direito dos animais a uma vida digna, respeito, proteção e cuidados. Embora não tenha força legal, influenciou legislações e políticas públicas em diversos países. Mas, infelizmente, a situação do Spiridon II é clara no quanto o mundo falha vergonhosamente em cumprir até mesmo o básico.
O que mais causa tristeza neste caso é que não se trata de um acidente isolado. No ano passado, noticiamos a situação de outro navio com 14 mil ovelhas e 2 mil bovinos que ficou parado à deriva no mar da Austrália, sem tripulação, por mais de um mês, num sol de 40 graus, também em razão de burocracia na chegada ao destino. Percebemos que são sintomas de um sistema cruel, que transforma vidas em mercadorias transportadas em navios sucateados, sem transparência, sem fiscalização e sem nada de “humanidade”. Ativistas e especialistas em Direito Animal tem pedido o banimento total do transporte marítimo de animais vivos e este caso reforça que essa medida é necessária e urgente.
Que tipo de sofrimento de seres vivos estamos dispostos a permitir em nome do lucro, mesmo sabendo que compartilham conosco as mesmas emoções de medo e dor? E até quando vamos fingir que nada disso acontece? É chegada a hora da consciência!
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